Toda a Mente tem uma Voz... e toda a Voz tem uma Mente...



quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Personagem

Teu nome é quase indiferente...
e nem teu rosto mais me inquieta.
A arte de amar é exactamente
a de se ser poeta.

Para pensar em ti, me basta
o próprio amor que por ti sinto:
és a ideia, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.

O lugar da tua presença
é um deserto, entre variedades:
mas nesse deserto é que pensa
o olhar de todas as saudades.

Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silêncio, obscuro, disperso.

Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existência,
tudo – o espaço evita e consome:
e eu só conheço a tua ausência.

Eu só conheço o que não vejo.
E, nesse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho.

Cecília Meireles


Personagem 

 Cecília Meireles

Teu nome é quase indiferente
e nem teu rosto mais me inquieta.
A arte de amar é exactamente
a de se ser poeta.

Para pensar em ti, me basta
o próprio amor que por ti sinto:
és a ideia, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.

O lugar da tua presença
é um deserto, entre variedades:
mas nesse deserto é que pensa
o olhar de todas as saudades.

Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silêncio, obscuro, disperso.

Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existência,
tudo – o espaço evita e consome:
e eu só conheço a tua ausência.

Eu só conheço o que não vejo.
E, nesse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho.

art" emile vernon"
By
Emile Vernon
(Retirado Artes & Poesias)


Quando vier a Primavera

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim....


Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

Fernando Pessoa



quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Espero por ti. Demoras.

Chegas com a certeza? Achas que te enganaste? Olha em teu redor.
Segue o teu caminho. Que sentes? Que é que o coração te diz?
Corre, segue o que ele te pede. Procura o teu caminho.
Pode parecer que estás perdida sem saber o caminho, mas segue as pistas, o percurso é o teu alimento e o amor habita em ti. Tens a certeza? É aqui que queres chegar?...

Não te demores… mas se demorares, eu espero!

Jorge António Pinto Madureira

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

É tão fácil...

É tão fácil deixar andar. Simplesmente deixar. Uma ligeira tentativa aqui, outra ligeira tentativa ali. Só para disfarçar o deixar andar. E poder continuar a deixar andar. É tão fácil deixar andar. Não exige força, não exige motivação, não exige tentativa, não exige o risco de erro. Deixar andar exige continuar, apenas continuar. Os mesmos gestos, os mesmos hábitos, as mesmas respostas para as mesmas perguntas. Sempre a pura da mesma merda. Deixar andar é sempre a mesma pura da mesma merda. Estar na merda não é estar mergulhado na merda. Estar mergulhado é mau, claro. É muito mau. Mas o pior de tudo é estar apenas levemente besuntado de merda. O pior de tudo é estar impecável da cabeça aos pés, bem-cheiroso, imaculado, um brinquinho – e depois ter um pedacinho, um minúsculo centímetro ou nem isso, de merda na camisa ou nas calças ou nos sapatos. E aquele pedacinho de merda vai contagiando tudo o resto, e vai-se mantendo ali (porque é só um bocadinho e tu pensas que o limpas depois, e vais deixando para amanhã, outra vez para amanhã), sempre pequenino, sempre a perturbar-te. Sempre a manter-se por ali. E deixar andar é isso mesmo: a merdazinha, a merda pequeninha, a merda poucochinha, que vai ficando. Deixar andar é admitir estar limpinho da cabeça aos pés com um pedacito de merda pelo meio. E às tantas é aquilo que vês enquanto tu: aquela criatura impecável com um pedacinho de merda pelo meio. Mas não. Não. Tu não és esse gajo ou gajo. Mas não. Não. Tu não és alguém impecável da cabeça aos pés com um bocado de merda pelo meio. Tu és – e tens de querer sempre sê-lo – impecável da cabeça aos pés sem qualquer pedaço de merda pelo meio. Se é merda: é para expurgares de ti. Agarra nela e atira-a para bem longe. Não te deixes andar assim, com esse ligeiro cheiro, com esse ligeiro desconforto, com essa ligeira satisfação. Se é ligeira não é satisfação. Se é ligeira é outra qualquer coisa qualquer, é outra merda qualquer – mas não é satisfação. Se não és tu todo: então nem sequer és tu. Faz novas perguntas para poderes teres novas respostas, experimenta uma coisa por dia, nem que seja um gelado, um gesto, uma palavra. Experimenta, inventa, tenta, faz. Recusa deixar-te andar, recusa a facilidade doentia de deixares-te andar. Recusa tudo o que não seja tudo. Recusa nada que não seja tudo. Até porque qualquer nada é suficiente para já não ser tudo.

Pedro Chagas Freitas

Liberdade

By
Stive Henderson
 
 
 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Amo-te tanto...

Amo-te tanto mas hoje tenho de levar o carro ao mecânico, as rodas fazem um barulho estranho, não deve ser nada mas é melhor prevenir, amanhã prometo que vamos ver que tal se come naquele restaurante novo junto à rotunda, e depois levo-te ao cinema, ai não que não levo,
amo-te tanto mas hoje tenho de ver o treino do miúdo, o treinador ligou e disse-me que temos craque, o nosso menino a jogar como gente grande, vê lá tu, quando chegar com ele vê se tens prontinha aquela comida que ele adora, o puto merece, ai não que não merece,
amo-te tanto mas hoje tenho de ficar até tarde no escritório, há aquele projecto do estrangeiro para fechar, está aqui tudo perdido de nervos, não sei se aguento, daqui a pouco ligo-te para saber como vai tudo, o miúdo e as coisas aí em casa, agora tenho de ir mostrar a esta gente toda como se trabalha, ai não que não tenho,
amo-te tanto mas hoje tenho de me deitar cedo, amanhã é aquela reunião importante de que te falei, se conseguir o cliente vamos ser tão felizes, aquela casa, o carro novo, quem sabe?, só tenho de o conseguir convencer, tenho tudo prontinho na minha cabeça e nada pode falhar, vamos ser ricos, é o que é, ai não que não vamos,
amo-te tanto mas hoje não estás, cheguei à hora combinada para te levar a jantar e tu não estás, o miúdo também não, deve estar no treino, deixa-me cá ligar, ninguém atende, nem tu nem ele, provavelmente deves estar a preparar alguma, sempre foste tão assim, cheia de surpresas, daqui a nada entras pela porta e dizes que me amas, ai não que não dizes,
amo-te tanto mas hoje tenho de assinar este papel, olho-te e peço-te perdão, prometo-te que não vai haver mais mecânicos nem treinos nem clientes estrangeiros nem reuniões entre nós, garanto-te que te quero acima de tudo, olho-te mais uma vez nos olhos e procuro acalmar o que te dói, mas tu só dizes para eu assinar e eu assino, as mãos tremem e até já uma lágrima caiu sobre elas, o nosso filho quando souber vai chorar como um menino pequeno outra vez, o nosso craque, podias ficar pelo menos pelo nosso craque, ou pelo menos por mim, para me manteres vivo, Deus me salve de não te ter comigo, sou uma impossibilidade se não te tiver para gostar, ai não que não sou,
amo-te tanto mas hoje não tenho nada para fazer, a casa escura, um silêncio vazio e nada para fazer, apenas esperar que te esqueças de mim e me voltes a amar, e eu amo-te tanto, ai não que não amo.

Pedro Chagas Freitas